YABÁS

Mães Orixás



A narrativa mítica associada ao alimento convoca a pensar no tempo da ancestralidade de forma circular, em que o tempo sagrado sai de sua origem e a ela retorna. Refletir sobre a narrativa mítica é se entregar a esse movimento de repetição. É assim que o prazer da comida em vários momentos da vida e, sobretudo, no ritual de santo, estabelece o gosto e o desgosto dos orixás. 

É a garantia da validade dos gestos e dos atos numa revelação primordial. Os ritos reatualizam os acontecimentos primordiais do mundo quando nas festas e celebrações" do candomblé Queto. Não há rito sem mito, porque neste, aquele se justifica e se fundamenta, na circularidade ancestral de retomada da primordialidade instaurada pelo mito na repetição de atos/rituais simbólicos da religião. A fim de entender o modo de narrar os mitos e o modo de fazer a comida, o lugar sagrado está urdido no tempo em sua repetição, de tal maneira que nas trilhas sagradas dos alimentos, do modo de confeccioná-los, o uso dos líquidos e no encontro com especiarias, a comida inscreve um sabor que sustenta a energia da vida.

A senhora que cozinha – A "Iyá agbá sé" ou "iabassé"

A cozinha é um lugar especial nas nossas casas, e em outros espaços que fazem e servem comida, como acontece nas feiras, nos mercados, nos restaurantes e, em especial, nos terreiros onde, a cozinha é um espaço sagrado; pois, a comida nas religiões de matriz africana é uma linguagem fundamental que faz parte das muitas maneiras de se comunicar como sagrado.

No terreiro, há um entendimento de que "tudo" come. O chão come, as árvores sagradas comem, os atabaques comem, os assentamentos dos orixás comem; e tudo mais que tenha a função e o sentido para ser sacralizado terá um tipo de ingrediente, de preparo; terá uma receita para cada ritual especifico.

A comida é uma complexa realização visual, estética e simbólica. Também o ato de comer significa que se une o ato sagrado de se alimentar ao direito da soberania alimentar.

A alimentação cria unidade e preserva o "asé", além de orientar a vida dos membros dos terreiros, ela dá identidade e singulariza os calendários das obrigações religiosas de caráter "interno", restritos à comunidade do terreiro; como também das celebrações públicas, onde, sempre, as comidas têm um forte sentido socializador

É comum que pessoas que não fazem parte da comunidade frequentem as festas dos terreiros com o objetivo de experimentar as comidas sagradas, e participar destes verdadeiros banquetes que geralmente acontecem no final das celebrações.

E nesse momento de comensalidade coletiva que se dá com fartura de comida, que além de sagradas são gostosas, porque a comida é fundamental nas relações sociais e na imagem religiosa do terreiro.

Assim, as pessoas responsáveis pelas cozinhas devem passar pela iniciação religiosa, e como se diz nos terreiros: é preciso também ter "mão de cozinha", ter vocação para a cozinha.

E, conforme a tradição, uma mulher é escolhida para cozinhar para os deuses e para os homens, porque os cargos ou funções nos terreiros seguem critérios de gênero. Então, realiza-se a iniciação da "iyá agbá sé", que desta maneira vai começar a experimentar um longo processo de aprendizado dos conhecimentos religiosos que são transmitidos pelos diferentes membros do terreiro.

É a função "iyá agbá sé" cozinhar, escolher ingredientes, selecionar utensílios; saber maneiras especiais de cocção, de frituras, de como lidar com o fogo; quais as quantidades; e como mostrar as comidas nos diferentes momentos da vida religiosa do terreiro.

O preparo de variadas receitas; o uso dos ingredientes, os mais diversos; fazem parte da função social e hierárquica da mulher na cozinha do terreiro, que também passa a ocupar um significativo papel no âmbito sagrado, e para o cotidiano da comunidade.

Pode-se dizer que desde os mais elaborados cardápios ao uso de um acaçá mostra a função que tem cada comida no terreiro. Todas são importantes, todas terão um sentido, uma relação do entendimento do sagrado no cotidiano.

Os saberes culinários devem ser muito consistentes sobre o conhecimento das diferentes técnicas, na sua maioria artesanais. E para realizar tarefas tão elaboradas, e que exigem tantos conhecimentos, a seleção da mulher que irá cozinhar segue muitos critérios, e um dos principais é a dedicação que ela deverá ter para acompanhar os muitos momentos da vida religiosa, com rotinas semanais, iniciações, obrigações; e os calendários das festas que acontecem no terreiro.

Fazer a comida é uma ação diária que estabelece diálogos entre homem e o sagrado, e se relaciona com as formas rituais para o oferecimento, por exemplo, de um acarajé para Iansã, de um prato de ebô para Oxalá, que deve seguir os preceitos que mostram diferentes aspectos sobre quantidade, tipos de utensílios, e demais temas rituais que estão integrados ao oferecimento de cada comida.

Também, a mulher que cozinha no terreiro deve ser escolhida por ter uma idade mais avançada, e por isso não poder mais menstruar, pois a menstruação é vista como um dos grandes tabus para quem escolhe, prepara e serve comida em âmbito sagrado.

Ainda, o papel social da mulher na cozinha sagrada integra-se a outras atividades hierarquizadas que se dão com a chegada das carnes e vísceras de diferentes animais que serão oferecidos de maneira ritual pelo axogum o homem iniciado para os sacrifícios. E, seguir todas as orientações da Ialorixá para que se preserve os muitos detalhes que fazem parte da preparação e da estética de cada comida.

Na ética dos terreiros, as comidas devem sempre dialogar com as demais linguagens, como música, dança, tradições orais, indumentárias.

Sem dúvida, há um outro entendimento sobre gastronomia nesses contextos que abrangem o sentido do sagrado. As receitas que são realizadas no seu rigor quanto ao uso de ingredientes, processos culinários, estética do prato, maneiras especiais de servir, e demais referências, fazem de cada comida uma expressão única e complexa da memória cultural de matriz africana.

Muitos cardápios africanos são mantidos porque os terreiros vivem os seus sabores na vida diária e nas festas, e assim preservam este patrimônio alimentar que faz parte também da vida de todos os brasileiros.

Axé Salve todas as Yabás!


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